sábado, 21 de agosto de 2010

A Cor Púrpura



Em seu nono longa-metragem, A Cor Púrpura/The Color Purple, 1986, Spielberg fez o que considerou ter sido o maior desafio de sua vida: trocou o sonho pela realidade, as famílias dos abastados subúrbios da classe média alta das grandes cidades por um punhado de pessoas pobres, infelizes, oprimidas, os super-heróis à la Indiana Jones por pessoas simples, humildes, que apanham e levam desaforo para casa. O mago, desta vez, trocou o sonho pelo pesadelo de quem é – como diz um de seus personagens – preto, pobre, feio e mulher.

Foi Kathleen Kennedy, uma produtora que trabalha com Spielberg há anos, que recomendou a ele o livro A Cor Púrpura, da escritora negra Alice Walker, Prêmio Pulitzer e American Book Award para ficção em 1983, e grande sucesso de público (ficou um ano na lista dos livros mais vendidos do New York Times). “Todas as mulheres estão lendo”, avisou Kathleen. Spielberg leu e imediatamente comprou os direitos de filmagem para sua empresa, a Amblin Entertainment. 
As verdades adultas começam muito cedo na vida de Celie, a personagem principal da história. Aos 14 anos, ela engravida pela segunda vez, de seu próprio padrasto, na zona rural da Georgia, no sudeste americano, no começo do século (XX). Não vê as crianças, no entanto – o padrasto as dá para um casal que não pode ter filhos. Ainda aos 14 anos, Celie (interpretada, adolescente, por Desreta Jackson, e, adulta, por Whoopi Goldberg) é entregue pelo padrasto a um fazendeiro vizinho, Albert (Danny Glover), que ela chama apenas de Mister (e os letreiros do filme, no Brasil, assim como a tradução do livro, chamam de Sinhô); ele havia ficado viúvo, e precisava de uma mulher para limpar a casa, cozinhar, fazer-lhe a barba, cuidar dos seus três filhos e, eventualmente, abrir as pernas, enquanto ele literalmente a cavalga, olhando para o retrato, ao lado da cama, da mulher que é a paixão de sua vida, Shug Avery (Margaret Avery), uma cantora de cabaré.
Como se vê, Celie é o retrato, em tons berrantes, caricaturais, do ser humano oprimido. A mulher é o negro do mundo, escreveu John Lennon. A Celie criada pela feminista Alice Walker é isso elevado à enésima potência, é a escrava mais escrava que se poderia conceber, a escrava de um homem brutal que por sua vez é oprimido pelo pai; Celie, como o próprio Albet lhe diz, é, em suma, preta, pobre, feia e mulher, em uma sociedade extremamente machista, racista, classista.
Celie tem um único amor na vida: Nettie, sua irmã mais nova, mais bonita, mais atraente, mais estudada (Celie é analfabeta; Nettie é quem a ensina a escrever). Nettie (Akosua Busia) foge do padrasto opressor e pede para morar na casa do homem que oprime sua irmã. Ele tenta seduzi-la, ela reage, ele a manda embora; Nettie vai embora gritando para a irmã que escreverá sempre para ela. Mister, o Sinhô, naturalmente, proíbe Celie de chegar perto da caixinha do correio.
Isso é 1909. A história acompanhará a trajetória desses tristes personagens ao longo dos 34 anos seguintes, até 1943. Celie e os filhos de Albert crescem, igualmente tiranizados pelo Sinhô. O mais velho dos filhos, Harpo (Willard Pugh), casa-se com Sofia (Oprah Winfrey), uma anti-Celie, uma mulher firme, corajosa, que não aceita ser escrava de pai ou de marido.
Celie começa seu movimento para fora da passividade escrava através de seu encontro com a amante de Albert, a cantora Sugh Avery – ou, nos letreiros brasileiros, Doci Avery (Shug é corruptela de sugar, açúcar). Shug Avery é o que Celie jamais pôde ser: bonita, atraente, sensual, alegre e sobretudo livre.
A Cor Púrpura teve 11 indicações (para os prêmios de melhor filme, fotografia, roteiro adaptado, figurinos, maquilagem, canção original, direção de arte, trilha sonora original, atriz para Whoopi Goldberg, atriz coadjuvante para Margaret Avery e Oprah Winfrey), mas Spielberg não foi sequer indicado para concorrer ao prêmio de melhor diretor. Um executivo de Hollywood comentou que isso parecia com dizer que o David, de Michelangelo, é uma obra-prima da escultura embora Michelangelo seja um escultor menor. Spielberg foi ao Dorothy Chandler Pavillion, e suportou estoicamente as longas horas da festa, para ver seu filme derrotado 11 vezes.

Mas Spielberg não estava preocupado com a crítica, e sim com o público: “Minha intenção é fazer filmes que as pessoas gostem de ver, eu inclusive”. Resta saber se as pessoas estão interessadas em ir ao cinema para ver uma realidade próxima do pesadelo, ou se, simplesmente, preferem o sonho – que Spielberg sabe como ninguém alimentar.

sábado, 3 de julho de 2010

Na Natureza Selvagem




Adaptado a partir da biografia escrita pelo talentoso Jon Krakauer, o roteiro do diretor Sean Penn enxerga seu protagonista como um jovem extremamente sensível cujos olhos se enchem d’água apenas com a visão dos animais em seu habitat. Abandonando seus pais e a irmã depois de se formar, McCandless parte numa viagem sem rumo através dos Estados Unidos com o propósito não muito bem definido de viver uma experiência autêntica de auto-descoberta – e, no processo, se relaciona com todo tipo de indivíduo que cruza seu caminho, demonstrando, assim, um interesse genuíno em estabelecer ligações interpessoais que o ajudem a crescer.

McCandless está – embora não o admita - simplesmente fugindo de seu passado – e seu propósito não declarado (aliás, inconsciente) é encontrar alguma forma de preencher o vazio interior deixado pela relação conturbada com os pais.
Enfim, é a grande tradição americana de exploração do espaço aberto e deserto, com a subsequente criação de uma narrativa que se espalha sob a forma de lenda, perpetuando assim o mito da conquista do oeste selvagem. Dos cowboys, passando pelos beatnikis e chegando nos astronautas, me parece que esse é sempre o ponto: levar ao extremo a exploração da vastidão interna do ser humano por intermédio da vastidão externa (bem mais limitada).

Embora tudo possa ser subvertido, a discussão e o filme vem bem a calhar nessa época de absoluto excesso, de tudo à disposição - especialmente à disposição dos americanos, vamos combinar. Nunca foi tão difícil falar de uma cultura de renúncia, praticada por aventureiros e homens santos em todas as épocas da humanidade. E aí a gente encontra um segundo ponto de dificuldade: a mitificação da renúncia que acaba virando fuga - o que me parece, em parte, ser o caso de Chris Mc Candless. Embora seja perigoso simplificar a questão dessa forma, McCandless sempre foi extremamente revoltado com questões familiares mal resolvidas.
Merecia um capítulo a parte a trilha sonora de Into the Wild. Que trabalho maravilhoso o de Eddie Vedder neste filme! Ele realmente dá outro nível de beleza e de compreensão da história com suas composições. 

sábado, 24 de abril de 2010

Invictus

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O sempre competente Morgan Freeman finalmente ganhou a chance de encarnar o ícone sul-africano neste filme de ação comandada por seu amigo e velho parceiro profissional Clint Eastwood. Inspirado num livro de John Carlin, o roteiro de Anthony Peckham tem início com a libertação de Mandela e sua eleição para Presidente do país que o manteve prisioneiro por quase 30 anos.
Enfrentando a resistência de uma boa parte da elite branca, que lamenta o fim do apartheid, o líder descobre que a seleção nacional de rúgbi, admirada por este segmento da população (e desprezada pela maioria negra), está prestes a ser desmanchada por um recém-empossado comitê de esportes. Enxergando ali a oportunidade de começar a estabelecer uma reconciliação entre os ex-opressores e suas vítimas, ele se aproxima do capitão da equipe, o determinado François Pienaar (Matt Damon), com o objetivo de manifestar seu apoio ao time, que se encontra a alguns meses de disputar a Copa do Mundo.
Freeman empresta seu imenso carisma e sua voz poderosa e evocativa a Mandela, pronunciando as palavras numa cadência cuidadosa que não apenas remete à enunciação do homem que está encarnando, mas que também sugere uma cautela e uma inteligência fundamentais para que aquele homem possa desempenhar suas difíceis funções de guia de um país dividido pelo preconceito e pela miséria.
Conta com alguns momentos de sutileza: é interessante notar, por exemplo, como François fala em africâner com uma criada branca de Mandela sem perceber que isto é uma ofensa ao Presidente (que, por sua vez, finge não reparar) – e Eastwood deve ser elogiado por não tentar chamar a atenção do espectador para o que ocorre, deixando que percebamos sozinhos (ou não) a gafe cometida pelo atleta. Da mesma maneira, quando um dos guarda-costas negros de Mandela se vê diante de um colega branco que desconhece, seu impulso inicial (perguntar se “está preso”) é revelador e tocante, demonstrando seu condicionamento a décadas de opressão e injustiça. Para finalizar, a seqüência envolvendo uma excursão da seleção por uma região empobrecida do país é algo que emociona sem exageros ao mesmo tempo em que ilustra a inteligente estratégia dupla do Presidente, que dá um choque de realidade nos atletas enquanto leva a população a se aproximar do time.
Melhor filme de Clint desde Sobre Meninos e Lobos. Carga dramática absurda, enredo empolgante e um desfecho extremamente comovente. Clint conta e encanta pela maneira como tratou do acontecimento histórico.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Gran Torino



Clint Eastwood, aos 78 anos, está mais do que craque na arte da direção e sabe dessas coisas. Quando o espectador o vê empunhando uma arma de cara fechada, logo lembram do policial politicamente incorreto dos anos 70.

A temática aqui é o racismo e como nós vivemos com ele. Eastwood é Walt Kowalski, um ex-combatente da Guerra da Coréia e montador de carros aposentado que passa seus dias na porta de casa vendo o movimento da rua, tomando cerveja e xingando seus vizinhos Hmong, grupo étnico da região do sudeste Asiático (que lutou ao lado dos Estados Unidos na Guerra da Coréia). Quando Thao, um jovem Hmong, tenta roubar seu estimado carro Gran Torino de 1972, Kowalski fica irado, aponta uma arma para o garoto e por pouco não o mata. Em seguida, a família Hmong faz questão que o jovem trabalhe para Walt como forma de penitência. Durante esse trabalho, Walt transformaria o rapaz em um homem de verdade.

O bairro em que vivem Walt e os Hmong vive sob a constante ameaça de gângsteres, que não só querem atrair Thao para seu grupo como também foram responsáveis por induzi-lo a roubar o Gran Torino. Os embates entre eles e Walt são os melhores momentos do filme. Clint Eastwood sabe manipular a imagem da forma que deseja. Ele sabe que, quando o espectador o vê de cara fechada, com ódio mesmo, tende a se lembrar do personagem dos anos 70. Walt não leva desaforo para casa, e consegue impor sua moral, mesmo tendo quase 80 anos, com o grupo de jovens inconsequentes.

Gran Torino fica nesse meio: ao mesmo tempo em que mostra um Walt sem medo de tirar sangue dos outros, também é um retrato do racismo, já que em nenhum momento ele esconde seu desprezo pelos vizinhos. Isso, claro, até Thao começar a cativá-lo. É uma evolução interessante, mas ainda assim, o melhor do filme é mesmo os momentos durões e machões de Walt Kowalski.

Com relação ao trabalho dos atores, é importante ressaltar que os atores Hmong estão quase todos em seu primeiro filme. A produção buscou autenticidade, e a conseguiu. O contraste com Clint Eastwood (e Christopher Carley, que faz um padre que busca a “redenção” de Walt) é gritante. Eastwood, aliás, está fenomenal como sempre foi.